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O céu está bem mais divertido….

Henrique em Susques (ARG)

Henrique em Susques (ARG)

Neste domingo o céu se transformou em um lugar muito especial e divertido ao receber o meu amigo/irmão/primo Henrique Sottovia.
Henrique era o tipo de pessoa inesquecível e sempre presente com seu riso farto, escandaloso.
Felizes daqueles que conseguem dar e ouvir gargalhadas preciosas e constantes.
Um grande herói modesto, com seu jeito caipira de Tietê, seu sotaque franco e olhar de intenso azul – como sua alma. Feliz daquele que tem a oportunidade de compartilhar viagens e sonhos com pessoas assim.
Sou afortunado.
Henrique encheu todo o caminho de São Paulo a San Pedro de Atacama de intensa vibração e energia – por duas vezes fomos juntos ao Chile em longas viagens por terra.
Pudemos vibrar e comemorar juntos o aniversário de seu rim transplantado, ele ria da vida que sempre foi farta e generosa – mesmo batalhada em cada instante pela possível rejeição que podia pegá-lo em qualquer dia desprevenido. Henrique passou incríveis 27 anos com o rim de seu irmão Frederico… Marca comemorada nas duas viagens, com muito vinho local.
Quando tudo parecia complicado, o destino dava a ele a resposta imediata. Um “iluminado” como dizíamos.
Sempre conseguia alguém para dar-lhe informações precisas – mesmo no acostamento de estradas desertas comunicando-se através do seu “portunhol” carregado da cor do interior de São Paulo.
Em caso de pneu furado, encontrávamos o melhor borracheiro da Argentina para prontamente ajudá-lo. Além disso, sempre trocando muitos causos e a indefectível gargalhada farta e contagiante.
Risada alta, risada franca, risada de poucos – para poucos. Sempre terminando as frases com sua indagação carregada no sotaque: “Ceerrrto????” e os olhos esbugalhados e azuis, muito azuis, em um tom entre troça e muita convicção.
Neste momento certamente está comprando alguns mapas do céu para estudá-los minuciosamente e fazer seus cálculos de quilometragem, tempo e paradas estratégicas ao longo do caminho. Obviamente mapas muito bons e detalhados, pois não gostava de correr riscos desnecessários – tem que investir em coisa boa, dizia alegre. Se for carro, tem que ser do bom. Se for mapa, tem que ser preciso!
Vejo bem ele colocando seu boné e engrenando a primeira na sua Pajero de estimação. Pena que momentaneamente vai sentir falta da Cecília (sua esposa querida) ao seu lado controlando o mapa, o walk talkie e o que ele pode ou não comer e beber!!…

Henrique em seu habitat natural

Henrique em seu habitat natural


Uma pessoa incrível o Henrique. Ética impecável, trabalho duro como Arquiteto e a busca da excelência em tudo o que fazia – desde minuciosamente medir a distância entre os quadros de sua parede e o teto (“para que não tivesse nada desalinhado, ceerrrto?”) até em seus numerosos projetos residenciais e comerciais na cidade e região. Um obstinado pela estética e pelo capricho na execução. Aprendi muito, muito, muito com ele e seu jeito engraçado de ser.
Henrique é do tipo de pessoa que fará uma falta imensa para que o mundo seja melhor.

Aprendendo com o Henrique

Aprendendo com o Henrique

Outra façanha aprendida do Henrique era não perdoar nenhuma lhama ou girassol ou vulcão do caminho… todos vítimas de seu click de fotógrafo (quase) profissional.
Incrível como ele tratava um hobby como a fotografia. Um lugar especial em sua casa para todas as câmeras e lentes imagináveis, todas impecáveis – de todos os modelos e anos de fabricação. filmadoras da década de 80 ao lado de lentes incríveis arrematadas pela internet. Um gênio de coleções.
Aliás muitas coleções. Sua adega é antológica – não exatamente de vinhos, mas é um perfeito museu de objetos incrivelmente variados (de celulares antigos a garrafas de bebidas exóticas, passando por fotos e por todo tipo de quinquilharias) Nunca conheci um colecionador como ele. Tudo em perfeito estado, senão não valia a pena ter.

Até logo Henrique!!

Em busca do melhor ângulo…

Como disso o céu ganhou muita diversão e alegria.
Estou muito triste pela separação neste momento e muito feliz por sentir que ele reconquistou sua liberdade de ir e vir dando suas gostosas gargalhadas.
Ceerrrto?

Até logo Henrique, faça boa viagem!

Henrique Sottovia (1950-2014)

Henrique Sottovia (1950-2014)

A Arte de Viajar segundo Alain de Botton


O impulso de sair e navegar é um sintoma de vida; da busca por ela e do seu significado.

Olhando os detalhes do caminho e degustando os sentimentos despertados pelas cores, luzes, cheiros e temperaturas é que se pode ter um vislumbre sobre a essência do que estamos fazendo aqui na Terra. Nosso destino parece ser o de passageiros viajantes e observadores do caminho; nada mais é necessário que observar, absorver, sentir e seguir adiante.

Encontrei um livro interessantíssimo  sobre o ato de viajar. Uma escrita inteligente e fluida, profunda em sua simplicidade. Alain de Botton é um autor bastante interessante e este livro, com o perdão do jogo de palavras, é uma “viagem” verdadeira!

Vale a leitura minuciosa, a reflexão com calma e o fluir de uma longa viagem com ele. Abaixo um trecho que chama muito a atenção, sobre aviões e aeroportos. Sempre em viagens aéreas e em passagens por aeroportos, o sentimento é exatamente o mesmo descrito, quando se observa o ambiente e as grandes aves metálicas… É uma grande síntese sobre o significado deste milagre chamado avião, que pode anoitecer frio em um continente invernoso e amanhecer além-mar, na luz-calor do verão.

“Visto de um estacionamento junto a 09L/27R, como a pista norte é conhecida pelos pilotos, o 747 surge inicialmente como uma pequena luz branca e brilhante, uma estrela a mergulhar em direção à terra. Ele está no ar há 12 horas. Levantou voo ao alvorecer em Cingapura. Sobrevoou a baía de Bengala, Nova Déli, o deserto Afegão, o mar Cáspio. Traçou um percurso sobre a Romênia, a República Checa e o sul da Alemanha antes de começar a descida, de uma forma tão suave que poucos passageiros teriam notado uma mudança de intensidade dos motores, acima das águas turbulentas e marrom-acizentadas do litoral holandês. Acompanhou o Tâmisa sobre Londres, voltou-se para o norte perto de Hammersmith (onde os flaps foram ativados), fez uma curva sobre Uxbridge e corrigiu a rota sobre Slough. Vista do solo, a luz branca gradualmente ganha forma como um vasto corpo de dois andares, com quatro motores suspensos tais como brincos sob asas incrivelmente longas. Sob a chuva leve, nuvens de água formam um véu por trás do avião, em seu pesado avanço em direção ao campo de pouso. Abaixo dele estão os subúrbios de Slough. São 3 horas da tarde. Em mansões afastadas, chaleiras se enchem de água. Um aparelho de televisão está ligado numa sala de estar, sem som. Sombras verdes e vermelhas movimentam-se pelas paredes. O quotidiano. E sobre Slough passa um avião que poucas horas antes sobrevoava o Mar Cáspio. Mar Cáspio-Slough: o avião é um símbolo da amplitude do mundo, carregando em si indícios de todas as terras pelas quais passou; sua eterna mobilidade oferecendo um contrapeso imaginário aos sentimentos de estagnação e confinamento. Ainda nesta manhã, o avião sobrevoava a península da Malásia, um nome-lugar que parece recender aos aromas de goiaba e sândalo. Agora, alguns metros acima do solo que por tanto tempo evitou, ele parece imóvel, com o nariz voltado para o alto, parecendo fazer uma pausa antes que as dezesseis rodas traseiras encontrem a pista soltando jatos de fumaça que evidenciam sua velocidade e seu peso…

…Visíveis através da névoa de calor dos turboélices, outros aviões esperam para iniciar sua jornada. Em todas as pistas, aeronaves se movimentam oferecendo em suas barbatanas uma confusão de cores contra o horizonte cinzento, como veleiros numa regata….”

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O Real Como Miniatura da Lembrança

Sorriso adocicado na bala oferecida – gentileza treinada: “O senhor quer um caramelo?”.

Vôo rápido com a soneca doída no ombro e a má postura no assento econômico. Rostos e sorrisos, bocejo com lágrima salgada; bagagens desajeitadas e mensagens ao celular religado.

Muito o quê fazer, um dia qualquer.

Lá fora o sol. Grande e amarelo de outros tempos, outro mundo. Sol mesmo, Sol amigo. A impressão do cheiro e a miragem da poeira vermelha no espelho de milhões de fragmentos brilhantes na claridade antiga. Um vôo para trás – 35 ou 40 anos? Uma vida.

No rosto o impacto. Uma lufada quente e amarela invadindo a memória, o verde ao longe, o cheiro, o ar. Menino de novo descendo a escada com computador, celular, paletó e dor no ombro.

Sorriso de espera, “bem-vindo” e a viagem para a cidadezinha distante, que saudade desta viagem em bicicleta – super longe, super quente, super aventura.

O paletó suado, celular tocando e computador. O menino na memória pedalava mais forte na descida para sentir o quente no rosto e o zunir na ponte estreita – blamblamblam de tábuas precárias e o reflexo do riacho correndo. Sombra de árvore, risada franca – zumbido de vespa, estilingue caprichado.

Uma avenida grande e limpa, igreja, praça, ar condicionado no carro veloz. Depois da identificação na entrada, o grande galpão cheio de garrafas coloridas – bebida da festa de Reis, onde, durante as canções, a Kombi empoeirada vende garrafas marrons com rótulos tortos – maçãzinha bem doce, bem melada, bem amada. Surge no fundo do tempo o som das garrafas batendo, o som da viola e da canção repetitiva – chinelos havaianas, terra vermelha, gente rindo na claridade escaldante.

Lá fora o Sol. O ar; o cheiro rude do mato verde.

Na volta o Posto São Pedro ao lado da Rodovia. “Passa devagar, passa devagar, acho que era aqui!” Muitos caminhões na cópia reduzida do espaço da memória, nenhum cheio de adesivos e com a carroceria de madeira pintada como um grande barco, cheio de bois. Memória do cheiro e do som, sempre do Sol, sempre do ar muito quente. O real como miniatura da lembrança.

Um sopro de saudade do caminho da casa dela, beijos demorados e a descoberta do arrepio do amor. A passarela sobre a pista dupla – a mesma.

Um shopping oásis com ar condicionado bem forte. Bem na vizinhança da casa dela, em algum lugar bem distante no registro de 35 anos. O estacionamento cheio e o estômago vazio. Vazio na memória, vazio de alma que se despedaça nas cores reais embotando o sépia da nostalgia. Vontade de rodar pneu.

Um montão de mensagens; conversa com os Estados Unidos, discussão sobre a visita em Potirendaba. E o Sol ali – amarelo. E o ar ali – inferno.

Turbilhão de pessoas no antigo campo de aviação. Aeroporto acanhado para a multidão de hoje – “Riopretinho” virado em “Riopretão”. Um misto de agonia e tristeza marcado pelo choro insistente do nenê no calor inclemente da sala de embarque.

Ar condicionado na cabine da volta; celular, computador e paletó suado.

“O Senhor quer um caramelo?”

“BRASRIO”

Cristo Redentor - Braços abertos sobre a Guanabara

O Rio de Janeiro é uma sensação, mais que uma cidade… É um encontro de tudo com todos e de todos com tudo.

Começa irreverente em um desembarcar caótico no Santos Dumond; quase sempre. Mas sempre sorridente na bagunça geral/total.

Os cariocas o entendem, ou têm o ar de que o entendem e, sem exceção, o idolatram com aquele sorriso misterioso. Para saber o Rio há que viver o Rio.

A fila do táxi é qualquer coisa menos uma fila. É a fila especial, que apenas existe aqui. Há que se falar com o organizador da fila – com seu uniforme desleixado – para que o lugar da fila seja respeitado. E assim todos pegam o seu táxi com aqueles muitos “organizadores de fila” falando muito, gesticulando muito, oferecendo seus serviços múltiplos de fazedores de favores especiais a qualquer um da fila. Muito ocupados – sempre, não dá para entender direito qual é mesmo o seu trabalho ali.

É único e delicioso este jeito absurdo de fazer as coisas. É impossível acreditar que algo funcione, mas acontece uma improvisação qualquer e a coisa acaba andando – invariavelmente com muita conversa, favores especiais, sorrisos cúmplices e ajudantes ofertando favores exclusivos a todos…

O Rio é uma farsa verdadeira de homens e mulheres especiais. Descontração é a palavra óbvia para definí-lo; para ilustrar o humor e a atitude que reina na capital do Império.

Uma descontração medida e estudada em seu relaxamento e na propagada liberdade. Há que ver e mostrar corpos e músculos com a descontração consciente de não parecer reparar em nada. Tudo é tão natural que o bizarro convive com o inovador e o sem limites é ignorado em sua periculosidade.

O Rio é o Cristo de braços abertos – olho para tudo; vejo todos; abraço tudo e todos. Vale mesmo o abraço, não importa mais nada.

Há caos e probreza; aquela sensação de que um filme do Tarantino está sempre rodando ao seu lado. De repente surge forte a imensa cultura popular do Brasil, que respira em cada esquina – Espírito vibrante da alma e da proposta final do Brasil ao mundo.

Olho para as cariocas na praia e concluo que realmente Deus é Brasileiro. E carioca, naturalmente.

Já disse Drummond de Andrade que “No mar estava escrita uma cidade”. Acho que o Rio não está a beira mar. É o mar que está à beira do Rio.

O Brasil devia se escrever “BrasRio”.

"No mar estava escrita uma cidade"

De volta a São Paulo é acordar de uma madrugada recheada de sonhos meio alucinados – assustadores e coloridos.  

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