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Pitita

Vista de São José do Rio Preto

Na tarde da sexta-feira descompromissada de Rio Preto, parecia que tudo se movia muito devagar.

Folhas pensavam duas vezes para cair, uma vez que o chão provavelmente as receberia naquela abrasante sensação de que se poderia fritar um ovo facilmente no asfalto semi derretido sob o sol inclemente. O olhar distante sempre mostrava aquele tremor caracteristico da imagem junto ao chão quando o calor é muito e as miragens fáceis. Nuvens no céu cegante de azul desenhavam estranhas cenas de verão, terror ou comédia. No máximo aparecia aquele zunido de uma mangaba teimosa a voar no ar quente da tarde demorada, ou aquele farfalhar de mato ao sabor de um ventinho ocasional e invariavelmente quente.

Aí estava a cena completa. Tudo parado, nem um barulhinho em volta, mais de 35 graus facilmente.

Um menino de 12 anos a brincar sozinho com seu futebol de botão, entretido em compridos campeonatos imaginários, com heróis, vilões, campeões e perdedores – organizados por uma crônica esportiva e muitos enredos próprios, que apenas quem já foi um menino de 12 anos pode compreender. A mãe entretida em tantos deveres que se esquecera do escoamento de seu tempo pelos vãos dos dedos ágeis pelas muitas tarefas quotidianas e pela incrível habilidade de continuar sobrevivendo em situações aparentemente insolúveis.

Pitita

Subitamente aparecia o suspense da orelha em pé de um salto.

Seguia-se um ansioso ganido e o abanar constante do rabo, frenético ventilador peludo e simpático.

Uma flecha amarelada chispava em disparada rumo ao portão, assim rompedora da paz do ambiente, assim de repente, como se o mundo inteiro fosse desfilar em gala ali na frente daquele portão de ferro, enfrentando aquela tarde qualquer num bairro distante da cidade abafada.

Pitita latia sem parar olhando fixo entre as grades, abanando freneticamente seu rabo curto, pulando sobre as patas da frente, ganindo, chorando, sorrindo, gritando, implorando para que todos fizessem festa, que se colocasse a banda para tocar – afinal, o mundo era todo feito de pura felicidade.

Assim Pitita anunciava a chegada do meu pai, sem que qualquer um pudesse escutar o ronco distante do motor do carro, ou muito menos que se pudesse ver algo na rua que indicasse a chegada do TL azul marinho no final da rua. Era uma intuição da chegada, uma antecipação do momento de encontro mais feliz que já pude presenciar entre dois amigos – um homem e seu cão.

Ao menino vinha o pensamento atravessado de surpresa e alegria. Uma sensação na boca do estômago da chegada do pai após a longa semana de vendedor distante.

Do homem que chegava naquela festa, lembro das muitas viagens, das poucas notícias, das muitas histórias de não tão completa veracidade, mas de perfeita conexão com o mundo mágico de vender e comprar.

Lembro daquele muito suor no sol escaldante e dos cheiros característicos misturados entre bancos do carro, aperitivos tomados ao sol em bares distantes e dos melões e melancias compradas na beira de alguma estrada poeirenta do caminho. Lembro da textura do painel do TL, imitando grotescamente madeira em um plástico meio encardido. Tenho sonhos até hoje com a cor do talão de pedidos cheio de orelhas do manuseio e de suas cópias naquele azul profundo caracteristico das vias dos pedidos feitas com papel carbono.

Lembro da pasta de couro surrada e mística, das amostras encardidas dos diversos tipos de corda que se vendiam aos armazens longínquos deste mundão-universo delimitado pela rota do vendedor autônomo.

Esta festa da Pitita era um ritual de repetição semanal, com ensaios de pequenas mudanças a respeito do horário do dia, mas invariavelmente era o ritual de celebração da volta do guerreiro ao seu lar, não importando muito se as batalhas foram ou não ganhas naquele dia, semana ou ano. 

 Pitita apareceu em casa assim como aparecia o TL no meio da tarde – de repente e sem compromisso sério com nada e com ninguém. Já era meio adulta e chegou logo como se a amizade fosse de muitos anos, de muitas vidas. Vindo de não se sabe onde, adotou o menino, a casa, a oportunidade de comer e descansar do sol escaldante em um lugar sossegado – Sem contar com a sua imediata identificação com aquela figura que saía aos domingos de tarde e voltava às sextas-feiras, dando oportunidade para a realização da festa semanal da volta do guerreiro.

Pitita em nossa casa de Rio Preto

Era amarela, a diaba.

Pequena e de porte majestoso, quase uma nobre em sua simplicidade salpicada da simpatia barata e da disposição constante para fazer alguma arte – de preferência como cúmplice das artes dos 12 anos do menino. O seu focinho era negro, destacado do corpo amarelado, e isto lhe dava ainda mais altivez e simpatia.

Era irresistível, e como chegou, ficou em nossa casa para enquanto durasse a chama. Era notório o fato de que Pitita parecia sempre sorrir – não existem muitos cachorros que mostram isto tão facilmente como aquela pequenina fera amarela demonstrava todo o tempo. Ela fazia um eterno convite para que o sorriso fosse compartilhado, para que fosse ampliado em sua felicidade e em sua missão de trazer alegria a um lar carregado de discussões e mágoas antigas e situações em suspenso sem aparente solução.

Ela era um refresco na tarde quente de Rio Preto.

 Pitita representou um momento importantíssimo de renovação para meu pai e para minha família. Essa cachorrinha representou para a minha vida a esperança; um sentimento que eu não havia ainda experimentado em toda a minha existência até então.

Estavamos em 1973 ou em 1974; meu pai saía de uma grande crise derivada dos seus exageros com os aperitivos de aparência inocente e indulgente. Apesar de seus já 40 anos e de sua tremenda dose de mau-humor crônico no dia a dia, ele havia conseguido uma nova chance como vendedor, uma nova página para escrever uma outra história profissional; começando de baixo e com muito potencial para desenvolver uma nova carreira através de representações comerciais. Ele começou a vender farinha de trigo como sucessor do meu avô Pascoal, que já estava se aposentando e era um vendedor muito experiente; com uma clientela ja estabelecida em anos de muita sola de sapato gastas em amizades, conquistas e bons negócios na região em que atuava há mais de 30 anos.

Meu avô, como um pai extraordinário que era, confiava sua reputação e seu maior patrimônio – seus clientes e relações – a meu pai, que estava sedendo por recuperação e novas oportunidades.

Um empurrão e muita confiança – Anos felizes.

 Minha cachorrinha Pitita era para mim o símbolo desse novo tempo. Deste que foi o período mais concretamente feliz de minha infância.

Aquela festa da Pitita todas as semanas quando meu pai voltava para Rio Preto é o símbolo daqueles anos mágicos para mim. É o símbolo do meu início de entendimento do mundo mais concretamente e mais claramente.

Ela apareceu em minha vida como uma boa notícia e como um presságio bom de uma nova era.

Hoje, passados mais de 35 anos, quando volto do meu trabalho de vendedor posso claramente escutar sua exaltação e ver o seu sorriso eterno em minha alma. Dá até para sentir o abafado das tardes de Rio Preto, com seus eternos 35 graus à sombra.

O menino e sua amiga