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O Real Como Miniatura da Lembrança

Sorriso adocicado na bala oferecida – gentileza treinada: “O senhor quer um caramelo?”.

Vôo rápido com a soneca doída no ombro e a má postura no assento econômico. Rostos e sorrisos, bocejo com lágrima salgada; bagagens desajeitadas e mensagens ao celular religado.

Muito o quê fazer, um dia qualquer.

Lá fora o sol. Grande e amarelo de outros tempos, outro mundo. Sol mesmo, Sol amigo. A impressão do cheiro e a miragem da poeira vermelha no espelho de milhões de fragmentos brilhantes na claridade antiga. Um vôo para trás – 35 ou 40 anos? Uma vida.

No rosto o impacto. Uma lufada quente e amarela invadindo a memória, o verde ao longe, o cheiro, o ar. Menino de novo descendo a escada com computador, celular, paletó e dor no ombro.

Sorriso de espera, “bem-vindo” e a viagem para a cidadezinha distante, que saudade desta viagem em bicicleta – super longe, super quente, super aventura.

O paletó suado, celular tocando e computador. O menino na memória pedalava mais forte na descida para sentir o quente no rosto e o zunir na ponte estreita – blamblamblam de tábuas precárias e o reflexo do riacho correndo. Sombra de árvore, risada franca – zumbido de vespa, estilingue caprichado.

Uma avenida grande e limpa, igreja, praça, ar condicionado no carro veloz. Depois da identificação na entrada, o grande galpão cheio de garrafas coloridas – bebida da festa de Reis, onde, durante as canções, a Kombi empoeirada vende garrafas marrons com rótulos tortos – maçãzinha bem doce, bem melada, bem amada. Surge no fundo do tempo o som das garrafas batendo, o som da viola e da canção repetitiva – chinelos havaianas, terra vermelha, gente rindo na claridade escaldante.

Lá fora o Sol. O ar; o cheiro rude do mato verde.

Na volta o Posto São Pedro ao lado da Rodovia. “Passa devagar, passa devagar, acho que era aqui!” Muitos caminhões na cópia reduzida do espaço da memória, nenhum cheio de adesivos e com a carroceria de madeira pintada como um grande barco, cheio de bois. Memória do cheiro e do som, sempre do Sol, sempre do ar muito quente. O real como miniatura da lembrança.

Um sopro de saudade do caminho da casa dela, beijos demorados e a descoberta do arrepio do amor. A passarela sobre a pista dupla – a mesma.

Um shopping oásis com ar condicionado bem forte. Bem na vizinhança da casa dela, em algum lugar bem distante no registro de 35 anos. O estacionamento cheio e o estômago vazio. Vazio na memória, vazio de alma que se despedaça nas cores reais embotando o sépia da nostalgia. Vontade de rodar pneu.

Um montão de mensagens; conversa com os Estados Unidos, discussão sobre a visita em Potirendaba. E o Sol ali – amarelo. E o ar ali – inferno.

Turbilhão de pessoas no antigo campo de aviação. Aeroporto acanhado para a multidão de hoje – “Riopretinho” virado em “Riopretão”. Um misto de agonia e tristeza marcado pelo choro insistente do nenê no calor inclemente da sala de embarque.

Ar condicionado na cabine da volta; celular, computador e paletó suado.

“O Senhor quer um caramelo?”

Luz na Estação Antiga

Estação da Luz - São Paulo - por volta de 1908

Ainda sinto a sensação que era chegar de Rio Preto na grande estação escura; com aquele cheiro que o nariz do menino identificava como algo meio vago e característico, chamado poluição.

Era um cheiro doce de podridão misturado com a borracha queimada do freio do trem. Cada silvo deste freio chegando, cada apito do trem; e o som seco das rodas metálicas nos trilhos, ficava impregnado por muito tempo como um selo bem colado em carta, como cola feita de água e farinha nos dedos depois de fazer a pipa.

Os sons acompanhavam os dias de férias e as noites da fria São Paulo do final da década de 60.

Partida e chegada na Luz - década de 60

O coração pulando como um burro xucro dentro do peito, depois das 10 horas de paradas curtas, caminhos longos, barulho e calor. Geralmente malas grandes, minha mãe e seus óculos escuros e lenço na cabeça – uma deusa de filme dos anos 50.

Ali a grande multidão da Luz. Um grande tumulto, muito barulho, meio frio, meio garoa, totalmente São Paulo, com sua vastidão misteriosa e os seus muitos ruídos e sujeiras.

Meu avô Augusto em seu apartamento de Santo Andre - por volta de 1969

Invariavelmente meu avô Augusto na plataforma a esperar atento. Seu cigarro Kent, de maço verdinho e cheiro ardido de fumo barato. Seus óculos de aro redondo e sua imensa bondade no sorrir e abraçar. E carregar a mala, e acender outro cigarro ao dar as boas-vindas e comprar as passagens do Santos-Jundiaí para Santo André, nosso destino final.

Ainda na plataforma esperando o trem urbano, o menino podia observar mendigos, vendedores, famílias, gente de chapéu e guarda-chuvas, ali mesmo compartilhando a multidão apressada sempre. Cada um mais ou menos perdido em seu mundo particular, com aquele ar de metrópole de quem age como se estivesse só e ninguém observando, sabendo que nenhum detalhe é perdido por ninguém em volta. Uma multidão de solidões, ou, na visão dos 7,8 anos do menino; a solitária multidão de São Paulo.

O arrepio na espinha vinha invariavelmente quando se ouviam os apitos agudos dos trens que chegavam e partiam – fumaça, meio escuro, cheiro forte, gente à beça.

Assim é a Estação da Luz no meu repertório de lembranças da década de 60. Era um monstro de ferro; sujeira; fuligem escura e fedor característico. Com muita gente, com muito movimento e a vivacidade dos trens partindo e chegando a cada instante. Lembro muito da impressão incrível ao ver todos aqueles ferros da estrutura inglesa e bonita desta obra prima da Arquitetura. Uma impressão de metrópole, de vida moderna e apressada, de uma cidade parte ativa da história do mundo.

Voltar a este lugar em 2011 é simplesmente incrível.

Estação da Luz - dezembro 2010

Uma restauração impressionante foi feita neste velho edifício e ele ficou com um ar bastante interessante e diferente – meio pasteurizado, já que agora é claro e iluminado como uma lembrança distante do que um dia foi debaixo de toda a sujeira e fuligem de quando era usado por aquele menino na década de 60… Lembrou-me muito de uma visita que fiz em Londres na Inglaterra, já há alguns anos atrás. Naquela visita tive a impressão que Londres parecia uma cidade “de brinquedo”, não muito verdadeira; quase um cenário. Minha referência mental de Londres vinha dos filmes e histórias; onde havia invariavelmente muita neblina; fumaça, confusão e sujeira.

 A Londres de hoje é absolutamente “Clean”… Bonita, mas com outra alma que não aquela do meu referencial interno. Achei  parecida a um cenário da Globo para uma novela. Será que a Globo transformou a Estação da Luz em cenário?

Luz - dezembro de 2010

A pergunta relevante parece ser outra: será que nossa lembrança precisa ser assim passada a limpo, ter mais limpeza e claridade para melhor lidarmos com ela quando a encontramos? Para dizer a verdade, senti falta da fuligem e do cheiro azedo que para mim chamavam “Estação da Luz”.

Por outro lado, a reforma trás coisas muito interessantes para o lugar, além de que plasticamente o edifício está simplesmente sensacional. Trás um inusitado piano no saguão para que qualquer pessoa possa sentar-se e tocar. Algo meio perdido ali no meio do saguão da estação; algo que as pessoas custam a entender o significado e ficam rodeando meio indecisas sobre qual seria a utilidade oculta daquilo e de como devem se comportar a respeito da presença do piano ali naquele lugar.

Durante o tempo que fiquei por ali, gostei mesmo foi do cidadão que, com sua mochila nas costas, provavelmente a caminho de volta ou de ida para a sua vida cotidiana, sentou-se tranquilamente ao piano e sacou uma interpretação bastante rebuscada do clássico “My Way”.

Piano na Estação da Luz - dezembro 2010

Ficamos todos (nós os transeuntes) ali parados; meio indecisos se aquilo era bonito ou feio, normal ou anormal, legal ou brega, para rir ou para chorar. Enquanto isso, a melodia avançava cada vez mais rebuscada e cheia de floreios de um virtuose transeunte. Gente ficava com ar distante, gente parava e olhava com curiosidade, gente – como eu – fotografava indeciso sobre o que fazer naquela circunstância inesperada, ouvindo uma interpretação fora de qualquer contexto, mas boa daquela melodia conhecida.

A Estação da Luz continua colocando São Paulo no circuito das grandes metrópoles, onde espetáculos de rua são corriqueiros e numerosos. A diferença aqui é que não havia um chapéu deste transeunte pedindo contribuições de qualquer espécie.

Ele tocava “My Way” porque simplesmente aquele era “his way”! Nada mais.

Pela maneira como tocava, havia muito que ensaiava e caprichava em cada nota e em cada floreado a mais que adicionava na melodia original. Era um artista que encontrara seu palco, seu piano particular e seu público predileto. No final, em meio aos tímidos aplausos, levantou-se e foi embora solitário, como cada um dos milhões da metrópole.

Nós, os transeuntes, de volta ao corre-corre, até que algum outro transeunte resolvesse mostrar a todos um alternativo – e único – “My Way”.

SETUP Ouvidoria & Soluções

setango@windowslive.com

Pitita

Vista de São José do Rio Preto

Na tarde da sexta-feira descompromissada de Rio Preto, parecia que tudo se movia muito devagar.

Folhas pensavam duas vezes para cair, uma vez que o chão provavelmente as receberia naquela abrasante sensação de que se poderia fritar um ovo facilmente no asfalto semi derretido sob o sol inclemente. O olhar distante sempre mostrava aquele tremor caracteristico da imagem junto ao chão quando o calor é muito e as miragens fáceis. Nuvens no céu cegante de azul desenhavam estranhas cenas de verão, terror ou comédia. No máximo aparecia aquele zunido de uma mangaba teimosa a voar no ar quente da tarde demorada, ou aquele farfalhar de mato ao sabor de um ventinho ocasional e invariavelmente quente.

Aí estava a cena completa. Tudo parado, nem um barulhinho em volta, mais de 35 graus facilmente.

Um menino de 12 anos a brincar sozinho com seu futebol de botão, entretido em compridos campeonatos imaginários, com heróis, vilões, campeões e perdedores – organizados por uma crônica esportiva e muitos enredos próprios, que apenas quem já foi um menino de 12 anos pode compreender. A mãe entretida em tantos deveres que se esquecera do escoamento de seu tempo pelos vãos dos dedos ágeis pelas muitas tarefas quotidianas e pela incrível habilidade de continuar sobrevivendo em situações aparentemente insolúveis.

Pitita

Subitamente aparecia o suspense da orelha em pé de um salto.

Seguia-se um ansioso ganido e o abanar constante do rabo, frenético ventilador peludo e simpático.

Uma flecha amarelada chispava em disparada rumo ao portão, assim rompedora da paz do ambiente, assim de repente, como se o mundo inteiro fosse desfilar em gala ali na frente daquele portão de ferro, enfrentando aquela tarde qualquer num bairro distante da cidade abafada.

Pitita latia sem parar olhando fixo entre as grades, abanando freneticamente seu rabo curto, pulando sobre as patas da frente, ganindo, chorando, sorrindo, gritando, implorando para que todos fizessem festa, que se colocasse a banda para tocar – afinal, o mundo era todo feito de pura felicidade.

Assim Pitita anunciava a chegada do meu pai, sem que qualquer um pudesse escutar o ronco distante do motor do carro, ou muito menos que se pudesse ver algo na rua que indicasse a chegada do TL azul marinho no final da rua. Era uma intuição da chegada, uma antecipação do momento de encontro mais feliz que já pude presenciar entre dois amigos – um homem e seu cão.

Ao menino vinha o pensamento atravessado de surpresa e alegria. Uma sensação na boca do estômago da chegada do pai após a longa semana de vendedor distante.

Do homem que chegava naquela festa, lembro das muitas viagens, das poucas notícias, das muitas histórias de não tão completa veracidade, mas de perfeita conexão com o mundo mágico de vender e comprar.

Lembro daquele muito suor no sol escaldante e dos cheiros característicos misturados entre bancos do carro, aperitivos tomados ao sol em bares distantes e dos melões e melancias compradas na beira de alguma estrada poeirenta do caminho. Lembro da textura do painel do TL, imitando grotescamente madeira em um plástico meio encardido. Tenho sonhos até hoje com a cor do talão de pedidos cheio de orelhas do manuseio e de suas cópias naquele azul profundo caracteristico das vias dos pedidos feitas com papel carbono.

Lembro da pasta de couro surrada e mística, das amostras encardidas dos diversos tipos de corda que se vendiam aos armazens longínquos deste mundão-universo delimitado pela rota do vendedor autônomo.

Esta festa da Pitita era um ritual de repetição semanal, com ensaios de pequenas mudanças a respeito do horário do dia, mas invariavelmente era o ritual de celebração da volta do guerreiro ao seu lar, não importando muito se as batalhas foram ou não ganhas naquele dia, semana ou ano. 

 Pitita apareceu em casa assim como aparecia o TL no meio da tarde – de repente e sem compromisso sério com nada e com ninguém. Já era meio adulta e chegou logo como se a amizade fosse de muitos anos, de muitas vidas. Vindo de não se sabe onde, adotou o menino, a casa, a oportunidade de comer e descansar do sol escaldante em um lugar sossegado – Sem contar com a sua imediata identificação com aquela figura que saía aos domingos de tarde e voltava às sextas-feiras, dando oportunidade para a realização da festa semanal da volta do guerreiro.

Pitita em nossa casa de Rio Preto

Era amarela, a diaba.

Pequena e de porte majestoso, quase uma nobre em sua simplicidade salpicada da simpatia barata e da disposição constante para fazer alguma arte – de preferência como cúmplice das artes dos 12 anos do menino. O seu focinho era negro, destacado do corpo amarelado, e isto lhe dava ainda mais altivez e simpatia.

Era irresistível, e como chegou, ficou em nossa casa para enquanto durasse a chama. Era notório o fato de que Pitita parecia sempre sorrir – não existem muitos cachorros que mostram isto tão facilmente como aquela pequenina fera amarela demonstrava todo o tempo. Ela fazia um eterno convite para que o sorriso fosse compartilhado, para que fosse ampliado em sua felicidade e em sua missão de trazer alegria a um lar carregado de discussões e mágoas antigas e situações em suspenso sem aparente solução.

Ela era um refresco na tarde quente de Rio Preto.

 Pitita representou um momento importantíssimo de renovação para meu pai e para minha família. Essa cachorrinha representou para a minha vida a esperança; um sentimento que eu não havia ainda experimentado em toda a minha existência até então.

Estavamos em 1973 ou em 1974; meu pai saía de uma grande crise derivada dos seus exageros com os aperitivos de aparência inocente e indulgente. Apesar de seus já 40 anos e de sua tremenda dose de mau-humor crônico no dia a dia, ele havia conseguido uma nova chance como vendedor, uma nova página para escrever uma outra história profissional; começando de baixo e com muito potencial para desenvolver uma nova carreira através de representações comerciais. Ele começou a vender farinha de trigo como sucessor do meu avô Pascoal, que já estava se aposentando e era um vendedor muito experiente; com uma clientela ja estabelecida em anos de muita sola de sapato gastas em amizades, conquistas e bons negócios na região em que atuava há mais de 30 anos.

Meu avô, como um pai extraordinário que era, confiava sua reputação e seu maior patrimônio – seus clientes e relações – a meu pai, que estava sedendo por recuperação e novas oportunidades.

Um empurrão e muita confiança – Anos felizes.

 Minha cachorrinha Pitita era para mim o símbolo desse novo tempo. Deste que foi o período mais concretamente feliz de minha infância.

Aquela festa da Pitita todas as semanas quando meu pai voltava para Rio Preto é o símbolo daqueles anos mágicos para mim. É o símbolo do meu início de entendimento do mundo mais concretamente e mais claramente.

Ela apareceu em minha vida como uma boa notícia e como um presságio bom de uma nova era.

Hoje, passados mais de 35 anos, quando volto do meu trabalho de vendedor posso claramente escutar sua exaltação e ver o seu sorriso eterno em minha alma. Dá até para sentir o abafado das tardes de Rio Preto, com seus eternos 35 graus à sombra.

O menino e sua amiga