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Luz na Estação Antiga

Estação da Luz - São Paulo - por volta de 1908

Ainda sinto a sensação que era chegar de Rio Preto na grande estação escura; com aquele cheiro que o nariz do menino identificava como algo meio vago e característico, chamado poluição.

Era um cheiro doce de podridão misturado com a borracha queimada do freio do trem. Cada silvo deste freio chegando, cada apito do trem; e o som seco das rodas metálicas nos trilhos, ficava impregnado por muito tempo como um selo bem colado em carta, como cola feita de água e farinha nos dedos depois de fazer a pipa.

Os sons acompanhavam os dias de férias e as noites da fria São Paulo do final da década de 60.

Partida e chegada na Luz - década de 60

O coração pulando como um burro xucro dentro do peito, depois das 10 horas de paradas curtas, caminhos longos, barulho e calor. Geralmente malas grandes, minha mãe e seus óculos escuros e lenço na cabeça – uma deusa de filme dos anos 50.

Ali a grande multidão da Luz. Um grande tumulto, muito barulho, meio frio, meio garoa, totalmente São Paulo, com sua vastidão misteriosa e os seus muitos ruídos e sujeiras.

Meu avô Augusto em seu apartamento de Santo Andre - por volta de 1969

Invariavelmente meu avô Augusto na plataforma a esperar atento. Seu cigarro Kent, de maço verdinho e cheiro ardido de fumo barato. Seus óculos de aro redondo e sua imensa bondade no sorrir e abraçar. E carregar a mala, e acender outro cigarro ao dar as boas-vindas e comprar as passagens do Santos-Jundiaí para Santo André, nosso destino final.

Ainda na plataforma esperando o trem urbano, o menino podia observar mendigos, vendedores, famílias, gente de chapéu e guarda-chuvas, ali mesmo compartilhando a multidão apressada sempre. Cada um mais ou menos perdido em seu mundo particular, com aquele ar de metrópole de quem age como se estivesse só e ninguém observando, sabendo que nenhum detalhe é perdido por ninguém em volta. Uma multidão de solidões, ou, na visão dos 7,8 anos do menino; a solitária multidão de São Paulo.

O arrepio na espinha vinha invariavelmente quando se ouviam os apitos agudos dos trens que chegavam e partiam – fumaça, meio escuro, cheiro forte, gente à beça.

Assim é a Estação da Luz no meu repertório de lembranças da década de 60. Era um monstro de ferro; sujeira; fuligem escura e fedor característico. Com muita gente, com muito movimento e a vivacidade dos trens partindo e chegando a cada instante. Lembro muito da impressão incrível ao ver todos aqueles ferros da estrutura inglesa e bonita desta obra prima da Arquitetura. Uma impressão de metrópole, de vida moderna e apressada, de uma cidade parte ativa da história do mundo.

Voltar a este lugar em 2011 é simplesmente incrível.

Estação da Luz - dezembro 2010

Uma restauração impressionante foi feita neste velho edifício e ele ficou com um ar bastante interessante e diferente – meio pasteurizado, já que agora é claro e iluminado como uma lembrança distante do que um dia foi debaixo de toda a sujeira e fuligem de quando era usado por aquele menino na década de 60… Lembrou-me muito de uma visita que fiz em Londres na Inglaterra, já há alguns anos atrás. Naquela visita tive a impressão que Londres parecia uma cidade “de brinquedo”, não muito verdadeira; quase um cenário. Minha referência mental de Londres vinha dos filmes e histórias; onde havia invariavelmente muita neblina; fumaça, confusão e sujeira.

 A Londres de hoje é absolutamente “Clean”… Bonita, mas com outra alma que não aquela do meu referencial interno. Achei  parecida a um cenário da Globo para uma novela. Será que a Globo transformou a Estação da Luz em cenário?

Luz - dezembro de 2010

A pergunta relevante parece ser outra: será que nossa lembrança precisa ser assim passada a limpo, ter mais limpeza e claridade para melhor lidarmos com ela quando a encontramos? Para dizer a verdade, senti falta da fuligem e do cheiro azedo que para mim chamavam “Estação da Luz”.

Por outro lado, a reforma trás coisas muito interessantes para o lugar, além de que plasticamente o edifício está simplesmente sensacional. Trás um inusitado piano no saguão para que qualquer pessoa possa sentar-se e tocar. Algo meio perdido ali no meio do saguão da estação; algo que as pessoas custam a entender o significado e ficam rodeando meio indecisas sobre qual seria a utilidade oculta daquilo e de como devem se comportar a respeito da presença do piano ali naquele lugar.

Durante o tempo que fiquei por ali, gostei mesmo foi do cidadão que, com sua mochila nas costas, provavelmente a caminho de volta ou de ida para a sua vida cotidiana, sentou-se tranquilamente ao piano e sacou uma interpretação bastante rebuscada do clássico “My Way”.

Piano na Estação da Luz - dezembro 2010

Ficamos todos (nós os transeuntes) ali parados; meio indecisos se aquilo era bonito ou feio, normal ou anormal, legal ou brega, para rir ou para chorar. Enquanto isso, a melodia avançava cada vez mais rebuscada e cheia de floreios de um virtuose transeunte. Gente ficava com ar distante, gente parava e olhava com curiosidade, gente – como eu – fotografava indeciso sobre o que fazer naquela circunstância inesperada, ouvindo uma interpretação fora de qualquer contexto, mas boa daquela melodia conhecida.

A Estação da Luz continua colocando São Paulo no circuito das grandes metrópoles, onde espetáculos de rua são corriqueiros e numerosos. A diferença aqui é que não havia um chapéu deste transeunte pedindo contribuições de qualquer espécie.

Ele tocava “My Way” porque simplesmente aquele era “his way”! Nada mais.

Pela maneira como tocava, havia muito que ensaiava e caprichava em cada nota e em cada floreado a mais que adicionava na melodia original. Era um artista que encontrara seu palco, seu piano particular e seu público predileto. No final, em meio aos tímidos aplausos, levantou-se e foi embora solitário, como cada um dos milhões da metrópole.

Nós, os transeuntes, de volta ao corre-corre, até que algum outro transeunte resolvesse mostrar a todos um alternativo – e único – “My Way”.

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