A digestão das coisas pela alma leva um tempo completamente impossível de se prever. Um instante ou um milênio, não importa. Há que ser respeitado e venerado. É preciso ouvir a alma, aceitar sua súplica, reconhecê-la em seus anseios, aceitar suas vulnerabilidades e virtudes. É a única forma possível de transcender e avançar – para descobrir a próxima questão e repetir o processo.
As questões de alma parecem pegajosas e inconvenientes vistas pela dimensão racional do nosso mundo. “Complicam a vida”. Creio que um dos grandes desafios da liderança corporativa seja encontrar o tempo da alma dentro do tempo do acionista. (e vice-versa).
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Naquele momento descobri que precisava muito mais tempo para aquela conversa.
Senti tocar algo realmente importante. Toquei ali, com toda a delicadeza que pude, e verifiquei, em seu olhar, que havia quebrado um fino e tênue cristal interno; profundo, doído e difícil de tragar.
A conversa já andava na sua metade, tínhamos meia volta de ponteiro para restaurar o estrago ou modificar o que se quebrara de forma inexorável. Tiquetaqueávamos ansiosos, trêmulos e hesitantes; em vozes e conexões subliminares; ás vezes chegando, ás vezes partindo, construindo tudo e destroçando de forma voraz cada segundo. Angústia.
Cruel relógio mental, que nada tem a ver com a necessidade de expansão dos sentimentos; da alma humana. Imprevisível tempo físico necessário para relações humanas, mais ainda quando os racionais tempo e recurso são medidos e tabelados de forma cartesiana, precisa. Reunir-se com alguém no trabalho deveria ser mesmo “Re-unir-se” com alguém. Poder explorar a união em seus tempos, espaços, vazios e preenchimentos – com toda a alma e todo o tempo do mundo.
“Racional-mente” delimitamos nosso tempo de união, de “re-união”. Pena.
Sorte o relógio da alma não se importar com a ordem linear do fluir físico do tempo inventado pela razão. Por vezes instantâneo ao brindar-nos com soluções, conclusões e respostas transcendentais. Por vezes infinito na necessidade da introspecção para fermentar o novo caminho a seguir. A alma não se importa com nossos comezinhos limites de terceira dimensão. Ela simplesmente é; como estava sendo naquele momento sentada à minha frente com aquele traje correto de competente executiva.
Uma lágrima surgiu no canto dos seus olhos azuis. Umidamente mortal.
Suas palavras e explicações não esconderam o suspiro profundo da urgência visceral em correr daquela sala. Veio a certeza da invasão de território, do avanço do sinal, do atropelamento do outro no exercício experiente, perspicaz, do trato profissional sobre o desempenho de alguém. Orgulho e culpa.
Chegou o cerne da questão, com garras, dentes e urros. Chegou afogado estabanado. Crispado, melado, sonolento. Um tema central para tratar em uma vida. A lágrima apenas negava o encontro banal com o chefe numa quarta-feira de manhã para descobrir dragões. Surpresa.
Uma torrente poderosa como uma catarata gigante, contínua – Iguaçu – saltou em borbotões inundando o rosto jovem.
Silenciamos por trinta segundos – mil anos. Conversa de almas.
Vi fascinado o espetáculo da razão invadir o ambiente enquanto os lenços de papel se acabavam. Veio vibrante, conectada; num jogo alucinado, desfilando como outra enxurrada volumosa, colorida e descabida nas explicações lógicas, maravilhosas. Invadiu inundando a sala de sobrevivência, súplica, amparo e pedido de desculpas. Medo.
Calei e ouvi; atônito, feliz. Reconheci o exercício do ego defendendo a existência do ser.
Interferi objetivando a conversa como ensina a cartilha dos executivos competentes. Plano de ação delineado, próximos passos claros, devida correção de rota para melhor desempenho, oportunidades que se apresentam como chance de desenvolvimento futuro, mais e mais racionalizações convenientes. Reunião bem sucedida. Alívio da mente.
Olhei seus olhos por trás do sorriso. Meio escondida ainda andava por lá a famosa lágrima da alma invadida.
Desviei o olhar para o relógio. Nosso tempo se esgotara.
Ela deixou a sala num rastro de perfume. Olhei para a janela enquanto o telefone tocava insistente e intrometido.
É preciso cautela para avançar nos assuntos da alma humana; podem existir dragões adormecidos esperando um cutucão. Temos mesmo o direito de cutucar dragões alheios?
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